Em baixo, um excelente post, já antigo, na página do Facebook de um adepto de futebol que merece ser lido com toda a atenção por todos nós. Continua actualizado.
O FUTEBOL ERA UM DESPORTO DE «GENTLEMEN»
Era, reconheço, uma ligação egoísta da minha parte. Se ia com o grupo, era porque me dava acesso a bilhetes difíceis de obter de outra forma.
O FUTEBOL ERA UM DESPORTO DE «GENTLEMEN»
Quando era adolescente, cheguei a ir a alguns jogos integrado numa claque. Chamava-se "Torcida Verde". Era composta de rapazes bem comportados, incapazes de fazer mal a uma mosca, mas mesmo assim a minha ligação manteve-se algo distanciada.
Era, reconheço, uma ligação egoísta da minha parte. Se ia com o grupo, era porque me dava acesso a bilhetes difíceis de obter de outra forma.
Numa das deslocações, ao estádio do Rio Ave, assisti ao impensável: elementos de outra claque do meu clube, na ausência de uma claque adversária, resolveram meter-se com a Torcida Verde, essa claque que não fazia mal a uma mosca e, por isso mesmo, praticamente não contava para nada ou não merecia apoio.
Alguns elementos da Juve Leo colocaram-se à frente do nosso grupo e começaram a fazer a saudação nazi. Quando o líder da Torcida os questionou sobre a atitude (que conotaria a Torcida com movimentos de extrema-direita), os outros jovens agigantaram-se para ele. Ficou claro que eles estavam à procura de violência. Fosse com quem fosse.
Durante a minha infância e adolescência fui doido por futebol. Ser do Sporting era ser do clube em que o meu avô paterno tinha sido médico. Era ser do clube da faixa da taça das taças que o meu avô recebera e depois me passara, para eu emoldurar e pendurar na parede do meu quarto. Ser de um determinado clube era um orgulho ligado, em muito, a uma tradição familiar.
Mas também foi nesse período que comecei a ver a outra face do futebol. Assisti ao início e ao agravamento da guerra Norte-Sul e em muitos Sporting-Porto tive de fugir, numa correria pelas arcadas do antigo estádio José Alvalade e pelas ruas adjacentes, às pedradas ou às cargas policiais ou aos grupos de claques que se queriam confrontar.
Assisti também, ao vivo, à final da taça Benfica-Sporting em que um verylight matou uma pessoa e onde se encarniçou ainda mais uma rivalidade entre os dois clubes lisboetas que já deixara de ser desportiva. Assisti, sem ter consciência disso, à ascensão da doença da clubite e à politização do futebol. Assisti, dando mais conta disso, à transformação de um gosto pelo desporto, numa enxurrada de discursos separatistas e extremados, capazes de despertar raivas, acicatar ódios, gerar brutalidades. Aos poucos, percebi que o legado do meu avô não era aquele.
Deixei de ir aos estádios, deixei de participar em conversas inflamadas sobre penaltis mal assinalados e golos anulados, praticamente deixei de ver jogos do campeonato nacional na televisão, e até acabei por ceder a faixa de campeão da taça das taças a um dos meus primos.
Continuei a gostar de ver futebol, mas dediquei-me ao meu clube de bairro, aos jogos da seleção portuguesa, aos campeonatos do mundo e da europa.
Os acontecimentos na Academia de Alcochete não surgiram do nada nem têm apenas um só culpado.
Todas as pessoas que um dia gostaram de futebol e que, no meio da paixão cega pelo seu clube, contribuíram para à febre da clubite, também deviam fazer um exame de consciência. Enquanto outros países resolviam exemplarmente os seus problemas associados ao futebol (veja-se o hooliganismo da Liga Inglesa nos anos 80), em Portugal continuámos a promover divisões e ódios, num assobio para o ar que permitiu a proliferação de episódios violentos, de cânticos aberrantes, de discussões furibundas, de casos de corrupção, ao ponto de as televisões, a esfregarem as mãos de contentes, aumentarem o tempo de antena dos "debates" sobre futebol, de preferência com comentadores cada vez mais ferrenhos e desbocados.
Eu tive a minha dose de culpa. Tentei expiá-la, afastando-me do mundo corruptor do futebol, capaz de incendiar até os espíritos mais esclarecidos, e procurando não dar mais nenhum contributo para os desvarios incontidos sempre que vinham à baila as rivalidades entre clubes.
Agora tenho de voltar a esse mundo pantanoso para dizer que me sinto envergonhado e triste, mas também que me sinto revoltado por tudo o que o Estado não fez, por tudo o que os dirigentes continuaram a fazer, por todos os adeptos que pactuaram com comentários e discussões e cânticos que apenas serviram para aprofundar as guerras clubísticas que, neste país dito de brandos costumes, transformaram um jogo bonito e digno numa monstruosidade diária, seja nos canais "informativos", seja nos cafés, seja nos estádios e pavilhões.
Desengane-se quem pense que isto nasceu agora. Desengane-se quem acha que isto é culpa do futebol e não da forma como as pessoas o vivem. Mas ainda bem que o meu avô, um gentleman que amava o seu Sporting, mas amava sobretudo o desporto, qualquer desporto, tal como amava as artes, qualquer arte, já não tem de assistir a certas barbaridades que conspurcam o que deveria ser uma festa, um convívio, uma diversão.
Ambos virámos as costas a esta face negra do futebol português.
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