domingo, 10 de fevereiro de 2019

Bruno de Carvalho: «O estranho mundo de Octávio Machado»



Excerto do “Sem filtro – As histórias dos bastidores da minha presidência" em pré-publicação exclusiva de Record

"Ponto prévio: Octávio Machado entrou no Sporting por intermédio de Jorge Jesus. Somente por ele. Somente por isso. E, aqui, uma vez mais, entramos nas tais conversas da estrutura que o Jorge gostava de ter. Disse-nos que o Octávio era alguém com muita experiência e conhecimento do que era o futebol português, e que o Sporting não tinha ninguém assim, dando sempre o exemplo de como era o Benfica, onde existiam várias pessoas com esse perfil. Defendeu que o Octávio era o homem certo para estar a trabalhar com ele e para o ajudar a pôr o Sporting mais perto dos rivais. Porque o Octávio era fundamental, porque o Octávio era imprescindível, porque os outros também tinham profissionais assim e porque, com ele, seria muito melhor. Não vimos qualquer problema em contratar alguém que era tão importante para o nosso novo treinador e fizemos-lhe essa vontade.
Não demorei muito tempo a perceber, contudo, que o novo diretor-geral do futebol era um elemento altamente perturbador. Todos os dias, por volta das 8h00, punha logo o Jorge fora de si porque começava a ler-lhe tudo o que vinha na imprensa sobre pessoas que poderiam ter emitido uma opinião menos simpática sobre o nosso treinador. «Já viste o que este diz de ti? E este aqui?» Esta forma de estar mexia muito com o Jorge. Estamos a falar de um homem bastante influenciável e sempre muito preocupado com o que os outros dizem sobre ele. Se houver alguém no meio do deserto que diga algo desfavorável do Jorge, ele vai logo tentar uma operação de charme junto dessa pessoa para que ela mude de opinião. Isto aconteceu várias vezes com alguns comentadores e jornalistas. Para o Jorge, a simples ideia de haver uma pessoa que não gosta dele é absolutamente insuportável.
Mas o Octávio, que o conhece há muitos anos, insistia em oferecer-lhe esse relato diário. E, como é um indivíduo muito culto, fazia uma análise profunda de cada uma das frases que, no seu entender, eram dirigidas contra o Jorge.
Não sou homem de fingir. Julgo que o Octávio percebeu desde cedo que, para mim, estaria a mais. Sem querer ser injusto, a verdade é que, nos dois anos em que ele esteve no clube, nunca vi nada do seu trabalho que pudesse constituir uma mais-valia para o Sporting. Disse isto ao Jorge várias vezes. Chegámos a fazer uma viagem de avião inteira em que o assunto era o Octávio. Ele até concordava comigo, mas terminava sempre a dizer o mesmo: «É um elemento fundamental. É um elemento imprescindível.»
E por isso o Octávio lá se ia aguentando. Mas muito contra a minha vontade. Cheguei ao cúmulo de entrar na Academia ou no autocarro do Sporting e ver os televisores sintonizados na CMTV, canal onde o Octávio trabalhou antes de sair do clube e para onde voltou logo a seguir. Tive de dar uma ordem a proibir a emissão de qualquer outra estação a não ser a Sporting TV. Sempre o achei um elemento que só servia para criar agitação interna.
Mais: o Octávio trazia dentro dele algumas ideias estranhas. A partir da segunda época, tanto ele como Jorge insistiam em contar -me como funcionava o futebol português. Diziam que certos clubes conseguiam ter influência junto de outros para vencerem quando jogassem contra eles. E o mesmo, segundo diziam, também era feito quando esses clubes queriam que os de menor dimensão ganhassem a um rival. Ambas as situações, como se sabe, são totalmente ilegais. Os chamados prémios para ganhar ou para perder.
Ao mesmo tempo, diziam que a estrutura do Sporting tinha muito a aprender com os rivais, nomeadamente com o Benfica. Davam o exemplo de que os encarnados compravam quantidades consideráveis de bilhetes dos estádios adversários, quando iam lá jogar, para terem o apoio do seu público, naturalmente, mas acabando, em consequência, por ter influência junto desses outros emblemas.
Também focaram a importância de os clubes se saberem relacionar bem como os árbitros. Aliás, esse foi um dos argumentos utilizados pelo Jorge para contratarmos o Octávio. Porque este conhecia muitos senhores do apito, encontrava -se com eles regularmente e estes respeitavam -no. Porque, com ele, os árbitros não iriam continuar a prejudicar o Sporting. Seriam justos. O próprio Octávio, mais tarde, confirmou essa suposta excelente ligação a vários árbitros.
Cheguei ao ponto de ter os dois a massacrarem-me com estes assuntos. E sempre a sublinharem que o mais importante era conseguir influência sobre os outros clubes. E essa conseguia-se através destas práticas, exemplificando com a tal compra de bilhetes que eles imputavam ao Benfica. «É assim que se faz», contavam eles. E lá voltavam ao mesmo: «Mas a nossa estrutura do futebol não sabe nada. É péssima.»
A certa altura tive de explicar-lhes: «O Sporting é um clube diferente. Jamais, comigo aqui, iria entrar nesse tipo de esquemas. Nem comigo, nem com os meus colegas.»
Ainda assim, eles insistiam. É verdade que nunca me disseram diretamente que o Sporting deveria entrar por vias ilegais. Mas lembravam sempre que era assim que outros faziam. Era uma conversa que me desagradava. E muito. Cheguei a dizer isso ao Jorge. E disse-lhe mais: «Se alguma vez o Sporting entrasse nesses esquemas, e nunca seria comigo, a verdade é que não precisava de si para nada.» Ou seja: quis dar -lhe a entender que um clube com um dos treinadores mais bem pagos do mundo teria de ser capaz de vencer sem precisar de entrar em jogos de bastidores.
Poderia ser isto uma sondagem dos dois para ver a minha abertura? Eu às vezes faço-me de parvo. Não sei o que era. Nunca quis tirar conclusões precipitadas. Nem quero. Mas posso dizer que o Octávio e o Jorge foram as primeiras pessoas com muitos anos de futebol de quem ouvi estas conversas sobre jogos para ganhar e para perder. Também é verdade que nunca foram mais além. Nunca passaram do ponto de apenas me contar estas coisas. Podia ser só uma lição. Aliás, ia ao encontro do que o Jorge gostava de me dizer muitas vezes: «Eu sei muito do que se passa no futebol.» Talvez um dia fosse bom ele contar tudo o que diz que sabe porque poderia ajudar a resolver muitos problemas do futebol português. E o Octávio podia fazer-lhe companhia. Os dois, pelos vistos, sabem mesmo muito.
Nessa segunda época, porém, o Octávio esteve bastante tempo ausente devido a problemas de saúde. E convém explicar que a sua baixa médica foi sendo prolongada devido a uma decisão conjunta de Frederico Varandas, então chefe do departamento clínico, e do próprio Jorge Jesus. Porquê? Só os dois poderão explicar, mas a verdade é que a baixa foi sendo estendida, e, consequentemente, o Octávio falhou muitos jogos.
Saiu no final dessa temporada depois de me entregar a sua carta de demissão. Recebi -a com agrado, não tenho qualquer problema em dizê-lo. O Jorge veio falar comigo ainda antes desse momento, voltando a afirmar que o Octávio era um elemento importantíssimo, que eu não lhe dava valor, mas que ele deveria continuar. Tenho a certeza de que, nessa altura, o Octávio pensou que poderia entregar-me a carta à vontade e que eu não aceitaria devido à pressão feita pelo Jorge. E que, dessa forma, ele ficaria legitimado para continuar na sua função. Enganou -se. Aceitei a carta no mesmo segundo."

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